Ministério Público mira 26 matadouros pernambucanos, o de Carnaíba está entre eles.

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Locais tiveram pedidos de interdição por funcionarem
de forma precária, colocando em risco o produto que chega à mesa. Só
neste ano, pelo menos quatro já foram fechados.

Da Folha PE

Um galpão no meio de um descampado é a primeira vista que os olhos
alcançam do cenário de uma matança. Os urubus insistentes e o cheiro
forte conduzido pelo vento são só os primeiros e incômodos sinais da
irresponsabilidade que está prestes a se revelar. Por trás das paredes
com pintura desgastada, carne bovina é manipulada sem que o mínimo de
higiene pareça ter significado. Cães conformados com as vísceras que
carregam na boca deitam-se sob a sombra.

Dois funcionários que persistem no local recolhem e guardam materiais
que ainda serão usados mais duas vezes ao longo da semana. Em poucos
dias, o curral estará cheio de gado novamente, o mesmo cuja carne
chegará a mesas não muito distantes dali. A poucos metros dali, urubus
sobrevoam o curral, já sem bois após uma madrugada de matança. Estão
interessados nas carcaças de chifres e cabeças descartadas próximo ao
matadouro.

Razoável seria se essa situação, encontrada no Matadouro Público de
Jurema, no Agreste de Pernambuco, fosse uma exceção. Não é. Se o Brasil
ficou chocado com os resultados da Operação Carne Fraca, da Polícia
Federal, que investiga crimes que macularam a credibilidade da produção
de frigoríficos grandes e donos de marcas conhecidas, por outro lado,
parece negligenciar há décadas o que ocorre em abatedouros públicos em
situação precária no Estado.

O de Jurema foi interditado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) um dia após a Folha de Pernambuco ir
ao local. Pelos menos outros três tiveram as portas cerradas neste ano
por condições precárias entre eles os de Floresta e Carnaíba, no Sertão,
e São João, no Agreste. Outros 26 tiveram o pedido de fechamento feito
por promotores. E nos últimos seis anos, 57 estabelecimentos do tipo
foram interditados ou desativados por irregularidades semelhantes.

“Verificamos que muitos matadouros funcionam há anos gerando riscos
ao meio ambiente e com ilegalidades em todo o processo sanitário, o que é
um risco evidente à saúde do consumidor. Do jeito que está, não pode
continuar”, avalia a promotora Liliane Fonseca, coordenadora do Centro
de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (Caop) de Defesa do
Consumidor do MPPE.

Em parceria com promotorias municipais, a instituição desenvolve,
desde 2011, o programa Carne de Primeira, que já resultou em 19
inquéritos civis e 24 ações civis públicas acerca de matadouros em
situação irregular.

Normas – Para funcionar de forma adequada, um
matadouro deve atender normas não só relativas à qualidade da carne, mas
ambientais e trabalhistas. O de Jurema parece padecer de boa parte dos
males gerados pela falta de atenção a essas regras. A água residual do
abate, imunda, corre por vários sulcos na terra. Cachorros defecaram
próximo à porta do estabelecimento, perto de onde as carnes costumam ser
manipuladas. Moscas estão presentes às dezenas, atraídas pela sujeira.

Com um misto de vergonha e resignação, um funcionário do matadouro
resmunga: “É isso aqui que alimenta a boca de dez famílias”. Servidor
público que é, não teme propriamente por si, mas pelas pessoas que,
indiretamente, se beneficiam da atividade precária: negociadores de
gado, vendedores e até mesmo pedintes em busca de sobras às terças,
sextas e sábados, dias de matança dos bois.O matadouro foi interditado
na última quarta-feira, um dia após a visita da reportagem da Folha de Pernambuco ao local.

Conforme a promotora de Justiça de Jurema, Mariana Cândido, o
estabelecimento será alvo de uma reunião daqui a 15 dias para avaliar a
adoção de medidas. Por enquanto, o abate passará a ser feito em
Canhotinho.

“Um inquérito civil foi instaurado para apurar essa situação. Sabemos
que a atividade de abate é naturalmente poluente e tem manutenção muito
cara. Já era difícil e, com a crise, ficou ainda mais”, avaliou. Nenhum
representante da prefeitura foi encontrado pela reportagem in loco ou
por telefone.

O impasse das exigências – Uma placa afixada na
entrada do Matadouro Municipal de Cupira,também no Agreste, indica que o
local foi reformado há oito anos. As expectativas geradas pelo aviso
são correspondidas em parte.

Dentro do prédio, um ambiente bem mais limpo afasta a repugnância
causada pelas passagens anteriores por abatedouros em situação precária.
Mas a presença de um gato por perto e o pouso insistente de moscas
sobre a carne prestes a ser transportada para açougues só evidencia que,
quando se fala em produção de carne bovina, responsabilidade pela
metade não deveria ser admitida. Não à toa, se não passar por novas
adequações, o local pode ser fechado em até três meses.

A deliberação foi tomada após uma fiscalização da Agência de Defesa e
Fiscalização Agropecuária (Adagro), em janeiro, após acionada pelo
MPPE. Entre as necessidades, estão a construção de passarelas que
permitam o acesso dos funcionários ao curral sem contato direto com os
animais e a aquisição de mais equipamentos de proteção individual.
Serras para uso em diferentes partes da carcaça do animal também são
exigidas pelas normas. Lá, só há uma para tudo.

Outra cobrança dos fiscais é a utilização de uma pistola pneumática
durante a matança. O equipamento, com ar comprimido, deve ser disparado,
de preferência uma só vez, sobre a parte frontal da cabeça do boi,
desnorteando-o para “evitar” um sofrimento maior e um estresse
antemorte.

Nesse processo, o animal é pendurado pelas patas traseiras, ainda
inconsciente, e segue para a fase da sangria. A vida se esvai quando é
feito um corte na carótida e da jugular do bovino. Em Cupira, Jurema e
boa parte dos matadouros do Interior, porém, o abate é feito de um modo
ainda mais cruel: o boi é tombado e recebe marretadas na cabeça. Quando
dá o último suspiro, geralmente, está com o crânio esfacelado e os olhos
esbugalhados.

Em Cupira, todas as terças e sextas-feiras, cerca de cem bois são
abatidos e abastecem mercados e feiras da própria cidade, além de
Agrestina e Panelas, na mesma região. “Ninguém nunca teve problema com a
carne. Para o nosso padrão, ninguém reclama”, ameniza o diretor do
matadouro, Gustavo Danilo. O secretário municipal de Agricultura, Edson
Calado, completa com uma dose de pragmatismo: a prefeitura não tem
condição de adequar o estabelecimento às condições exigidas. “Só a
pistola custa R$ 30 mil, a cadeira também é algo complicado. Fazer essas
adaptações, que vão custar mais de R$ 800 mil, é muito pesado para
cidades como a nossa”, declara.

Concorrência – A situação precária de alguns
matadouros, além de expor os riscos da carne produzida em várias regiões
do Interior do Estado, revela um problema de viabilidade econômica.
Como manter o equilíbrio financeiro e investir em estabelecimentos que
sofrem a concorrência de cidades vizinhas?

Em Jurema, por exemplo, segundo funcionários, cerca de dez bovinos
são abatidos em cada um dos três dias de matança. No restante da semana,
as instalações e os funcionários ficam ociosos.

A apenas 36 quilômetros dali, há outro matadouro em atividade. “O
número de abates não justifica cada município ter um abatedouro. Não
conseguem se manter, o custo é alto, e acabam funcionando de forma
irregular, sem que saibamos a procedência da carne, tampouco como ocorre
seu transporte e armazenamento”, afirma a promotora Liliane Fonseca, do
Caop de Defesa do Consumidor.

O que parece ser consenso entre MPPE, prefeituras e Governo do Estado
para solucionar as precariedades desses estabelecimentos é a instalação
de matadouros regionais. Grupos de municípios formariam consórcios para
investir em locais que atendessem, conjuntamente, às necessidades de
produção de carne de uma população maior.

É o caso de Cupira, Panelas, Lagoa dos Gatos e Agrestina, próximas
entre si. “É uma tendência acabar com os matadouros municipais. É uma
ideia interessante, porque investir quase R$ 1 milhão para adequar o
nosso matadouro, que tem uma estrutura antiga, e não ter retorno
econômico, é algo bastante complicado”, explica o secretário de
Agricultura de Cupira, Edson Calado.

Prefeito de Barra de Guabiraba, também no Agreste, Wilson Madeiro viu
o matadouro da cidade ser alvo de uma fiscalização há poucos dias. O
desfecho não foi diferente dos de regiões vizinhas: o estabelecimento
terá que ser fechado em até 20 dias. Como solução, o gestor defende algo
parecido à cobrança pelo cumprimento da Política Nacional de Resíduos
Sólidos, que, apesar dos atrasos, vem gerando ações compartilhadas entre
municípios para dar fim a lixões e destinar produtos descartados de
forma correta.

“Vencer esses desafios exige ações cooperadas. Se sobrar só para cada
município, não se está preparado para adquirir verba e construir [um
matadouro], muito menos num tempo curto”, conclui.

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